A guerra na Ucrânia… ou a agitação na Rússia e em França — “Um Conto de Duas Cidades”, por Alastair Crooke

Seleção e tradução de Francisco Tavares

10 min de leitura

Um Conto de Duas Cidades

 Por Alastair Crooke

Publicado por em 13 de Julho de 2023 (original aqui)

                                Foto: SCF

 

A convicção ocidental de que a fragilidade da Rússia se explica pelo seu afastamento das doutrinas económicas “anglo-saxónicas” reflecte uma ilusão.

 

O caos que os “especialistas” ocidentais esperavam, “com uma excitação libidinosa”, que se desenrolasse na Rússia “que iria certamente apresentar “russos… a matar russos”, e com Putin “provavelmente escondido algures”, chegou. Só que explodiu em França, onde não era esperada, com Macron nas cordas, em vez de ser Putin em Moscovo.

Há muito a aprender com esta interessante inversão de expectativas e de acontecimentos – da história de duas insurreições muito diferentes:

No sábado à tarde, depois de Prigozhin ter chegado a Rostov, correu nos Estados Unidos a notícia de que Prigozhin tinha feito um acordo com o Presidente Lukashenko para pôr fim ao seu protesto e ir para a Bielorrússia. Assim terminou um caso praticamente sem efusão de sangue. Prigozhin não recebeu qualquer apoio, quer da classe política, quer das forças armadas. O establishment ocidental ficou atordoado; as suas expectativas foram inexplicavelmente esmagadas em poucas horas.

No entanto, igualmente chocantes para o Ocidente, foram os vídeos que chegaram de Paris e de cidades de toda a França. Carros a arder; esquadras de polícia e edifícios municipais em chamas; polícias atacados e lojas amplamente saqueadas. Eram cenas como que retiradas da “Queda da Roma Imperial”.

Por fim, também esta insurreição se desvaneceu. No entanto, em nada se assemelhou ao desvanecimento do “motim” de Prigozhin, que terminou com uma manifestação de apoio ao Estado russo em si mesmo e ao Presidente Putin pessoalmente.

Na insurreição francesa, precisamente nada foi “resolvido” – o Estado é visto como “sem remédio” na sua versão atual: Já não é uma República. E a posição pessoal do Presidente Macron foi vilipendiada, possivelmente para lá de qualquer reabilitação.

Ao contrário do que aconteceu na Rússia, o Presidente francês viu grande parte da polícia virar-se contra ele (com o sindicato da polícia a emitir uma declaração que cheirava a uma iminência de guerra civil, com os revoltosos rotulados de “vermes”). Altos generais do exército também avisaram Macron para “controlar” a situação, ou eles seriam forçados a fazê-lo.

Claramente – ainda que apenas durante nove dias – os meios de repressão do Estado tinham virado as costas ao Chefe de Estado. A história diz-nos que um líder que tenha perdido o apoio dos que asseguram o cumprimento da lei pode também acabar por perdê-lo rapidamente (na próxima insurreição).

Este motim das zonas suburbanas é descartado demasiado facilmente como uma antiga ferida de origem argelina/marroquina que ressurge, uma vez mais. É verdade que o assassínio de um jovem de origem norte-africana foi o detonante imediato para os tumultos em várias cidades – todas em alvoroço no espaço de uma hora.

Para aqueles que pretendem descartar qualquer significado mais amplo (apesar de os protestos em massa anteriores não terem sido realizados pelos habitantes das zonas suburbanas), o facto é ignorado, com murmúrios de como os franceses são de alguma forma propensos a sair à rua!

Para ser franco, o problema subjacente que a França acaba de revelar é a crise pan-europeia – há muito em gestação – para a qual não existem soluções prontas. É uma crise que ameaça toda a Europa.

No entanto, os comentadores são rápidos a sugerir que os protestos de rua (como os de França) não podem ameaçar um Estado europeu – os protestos foram difusos e sem um núcleo político.

Stephen Kotkin, no entanto, escreveu um livro Uncivil Society em resposta ao mito prevalecente de que, sem uma sociedade civil paralela organizada, que se oponha e acabe por desalojar o regime, os Estados da UE estão perfeitamente seguros e podem “continuar” a ignorar a ira popular.

A tese de Kotkin é que os regimes comunistas caíram, não só de forma inesperada, mas também de um dia para o outro e (exceto na Polónia) sem a existência prévia de qualquer tipo de oposição organizada. É um mito completo que o comunismo tenha caído como resultado de uma sociedade civil opositora, escreve. O mito persiste, no entanto, num Ocidente que se ocupa em criar sociedades civis de oposição para promover os seus objectivos de mudança de regime.

Pelo contrário, a única estrutura organizada na Europa de Leste comunista era a Nomenklatura no poder. Kotkin estima que esta burocracia tecnocrática no poder representava cerca de cinco a sete por cento da população. Estas pessoas interagiam diariamente umas com as outras e formavam a entidade coerente que detinha o poder efetivo. Viviam uma realidade paralela privilegiada, totalmente desligada do mundo à sua volta, que ditava todos os aspectos da vida em seu próprio benefício – até que um dia deixou de o fazer. Foi esta tecnocracia que se desmoronou em 1989.

O que é que fez com que estes Estados caíssem subitamente? A resposta curta de Kotkin é um falhanço em cascata da confiança: uma “corrida aos bancos, mas política”. E o acontecimento crucial no derrube de todos os governos comunistas foi o protesto de rua. Assim, os acontecimentos de 1989 surpreenderam todo o Ocidente devido à ausência de uma oposição política organizada.

A questão aqui, claro, é que a tecnocracia europeia de hoje, habitando as suas realidades paralelas (à da maioria dos europeus) extremas de género, diversidade e ecológicas, presume presunçosamente que, com o controlo da Narrativa, pode suprimir o protesto e continuar a impor um futuro de Fórum Económico Mundial que apaga as identidades e culturas nacionais sem obstáculos.

O que está a acontecer em França – sob diversas formas – é precisamente “uma corrida aos bancos, mas política” contra o Presidente francês. E o que está a acontecer em França pode, no entanto, alastrar-se …

É claro que já antes tinham ocorrido protestos de rua em Estados comunistas. O que foi diferente em 1989, argumenta Kotkin, foi a extrema fragilidade do regime. Os dois factores imediatos – para além da simples incompetência e esclerose – foram a recusa de Mikhail Gorbachev (tal como Macron durante esta recente insurreição) em apoiar uma repressão, para além do esquema económico falhado de Ponzi em que todos estes Estados se tinham envolvido (pedindo empréstimos em moeda forte ao Ocidente para sustentar as suas economias).

É aqui que podemos compreender por que razão os recentes acontecimentos em França são tão graves e têm um impacto mais vasto. Porque, perversamente, a Europa está a percorrer essencialmente o mesmo caminho (com características ocidentais) que a Europa de Leste percorreu.

No final das duas guerras mundiais, os europeus ocidentais procuravam uma sociedade mais justa (a sociedade industrial que tinha precedido as guerras era francamente feudal e brutal). Os europeus queriam um novo acordo que se preocupasse também com os menos favorecidos. Não era o socialismo em si que se procurava, embora alguns quisessem claramente o comunismo. Essencialmente, tratava-se de reinserir alguns valores éticos numa esfera económica amoral de laissez-faire.

Não funcionou bem. O sistema foi inchando, até que os Estados ocidentais deixaram de poder pagá-lo. A dívida disparou. E então, na década de 1980, um aparente “remédio” – importado da Escola de Chicago de fanáticos neoliberais, que pregava o desgaste da infraestrutura social e a financeirização da economia – foi amplamente adotado.

Os pregadores de Chicago disseram à primeira-ministra Thatcher para deixar de construir navios ou fabricar automóveis – isso era para a Ásia. A “indústria” dos serviços financeiros era a galinha dos ovos de ouro do futuro.

A cura revelou-se “pior do que a doença”. Paradoxalmente, a falha deste enigma económico tinha sido percebida por Friedrich List e pela Escola Alemã de Economia, já no século XIX. Ele viu o defeito do modelo “anglo” baseado na dívida e no consumo: Que (em poucas palavras) o bem-estar de uma sociedade e a sua riqueza global são determinados não pelo que a sociedade pode comprar, mas pelo que pode produzir.

List previu que uma viragem no sentido de privilegiar o consumo – acima da atenção dada à construção da economia real – conduziria inevitavelmente a uma atenuação da economia real: À medida que o consumo, e um sector financeiro e de serviços efémero, sugavam o “oxigénio” de novos investimentos da produção real (ainda necessária para pagar as importações), a economia real murchava.

A autossuficiência iria diminuir, e uma base cada vez menor de criação de riqueza real iria suportar um número cada vez menor de empregos adequadamente remunerados. E seria necessário um endividamento cada vez maior para sustentar um grupo cada vez menor de pessoas com emprego produtivo. Isto representa o “Conto da França”.

Atualmente, nos Estados Unidos, por exemplo, o número oficial de desempregados é de 6,1 milhões de americanos; no entanto, 99,8 milhões de americanos em idade ativa são considerados “não activos”. Assim, um total de 105 milhões de americanos em idade ativa não têm emprego atualmente.

Esta é a mesma “armadilha” que afecta a França (e grande parte da Europa). A inflação está a aumentar; a economia real está a contrair-se; e o emprego bem pago a diminuir – ao mesmo tempo que o tecido de assistência foi eviscerado (por razões ideológicas).

A situação é desoladora. O aumento da imigração para a Europa agrava o problema. Toda a gente vê isso, exceto a Nomenklatura europeia que continua em posição de negação ideológica de uma “sociedade aberta”.

Eis a questão: não há soluções. Desfazer as contradições estruturais deste modelo de Chicago está para além das actuais capacidades políticas ocidentais.

A esquerda não tem solução e à direita não é permitida uma opinião – Zugzwang (xeque-mate).

O que nos leva de novo ao “Conto de Duas Cidades” e às suas experiências de insurreição muito diferentes: Em França, não há solução. Na Rússia, Putin e milhões de outros tinham experimentado a “terapia de choque” da libertação dos preços e da hiperfinanceirização durante os anos de Ieltsin.

E Putin “percebeu”. Como List previu, o modelo financeiro “anglo” corroeu a autossuficiência nacional e reduziu a base de criação de riqueza real, que proporcionava os empregos necessários para manter a população russa com trabalho.

Muitas pessoas perderam os seus empregos durante os anos de Ieltsin, não foram pagas e viram o valor real dos seus rendimentos cair a pique – enquanto os oligarcas, surgidos aparentemente do nada, vinham pilhar qualquer instituição que tivesse valor. Registou-se hiperinflação, banditismo, corrupção, corridas à moeda, fuga de capitais, pobreza desesperada, aumento do alcoolismo, declínio da saúde e exibições vulgares e esbanjadoras de riqueza por parte dos super-ricos.

No entanto, a principal influência sobre Putin veio do Presidente Xi. Este último tinha deixado claro, numa análise contundente intitulada “Porque é que a União Soviética se desintegrou?“, que o repúdio soviético da história do PCUS, de Lenine e de Estaline, “foi semear o caos na ideologia soviética e incorrer no niilismo histórico”.

Xi argumentou que, tendo em conta os dois pólos da antinomia ideológica – a construção anglo-americana, por um lado, e a crítica escatológica leninista do sistema económico ocidental, por outro -, os “estratos dirigentes soviéticos tinham deixado de acreditar” nesta última e, consequentemente, tinham deslizado para um estado de niilismo (com um giro na direçção da ideologia liberal-mercantil ocidental da era Gorbachev-Yeltsin).

O ponto de vista de Xi era claro: a China nunca tinha feito este desvio. Em termos simples, para Xi, a derrocada económica de Ieltsin foi o resultado da viragem para o liberalismo ocidental. E Putin concordou com isso.

Nas palavras de Putin, a China “conseguiu da melhor maneira possível, na minha opinião, utilizar as alavancas da administração central (para) o desenvolvimento de uma economia de mercado… A União Soviética não fez nada disso e os resultados de uma política económica ineficaz tiveram impacto na esfera política”.

Mas foi precisamente isso que a Rússia, sob Putin, corrigiu. A mistura da ideologia de Lenine com os conhecimentos económicos de List (um seguidor de List, o conde Sergei Witte, foi primeiro-ministro na Rússia do século XIX) tornou a Rússia autossuficiente.

O Ocidente não vê as coisas desta forma. Este último persiste em ver a Rússia como um Estado frágil e friável, tão apertado financeiramente que qualquer reviravolta na frente de batalha ucraniana poderia provocar um colapso financeiro em pânico (como se viu em 1998) e uma anarquia política em Moscovo, semelhante à da era Ieltsin.

Com base nesta análise errónea e absurda, o Ocidente lançou a guerra contra a Rússia através da Ucrânia. A estratégia de guerra foi sempre baseada na fragilidade política e económica da Rússia (e num exército atolado em estruturas de comando rígidas, ao estilo soviético).

A guerra pode ser atribuída, em grande parte, a esta incapacidade de compreender Xi e à forte convicção de Putin de que a devastação de Ieltsin era o resultado inevitável da viragem para o liberalismo ocidental. E que esta falha exigia uma correção concertada, o que Putin fez devidamente – mas que o Ocidente não notou.

No entanto, os EUA persistem, contra todas as evidências, na convicção de que a fragilidade inerente da Rússia se explica pelo seu afastamento das doutrinas económicas “anglo-saxónicas”. Isto reflete uma ilusão ocidental.

A maioria dos russos, por outro lado, atribui a resiliência da Rússia face a uma investida financeira ocidental combinada como explicável, porque Putin tinha levado a Rússia, em grande medida, a ser autossuficiente, fora da esfera económica ocidental dominada pelos EUA.

Assim se explica o paradoxo: Perante a “insurreição” de Prigozhin, os russos manifestaram a sua confiança e apoio ao Estado russo. Enquanto que na insurreição francesa, o povo expressou descontentamento e raiva pela “armadilha” em que se encontra. A corrida política ao “banco” Macron está em marcha.

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O autor: Alastair Crooke [1949-] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Fórum de Conflitos, uma organização que advoga o compromisso entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, era uma figura de destaque tanto na inteligência britânica (MI6) como na diplomacia da União Europeia. Era espião do Governo britânico, mas reformou-se pouco depois de se casar. Crooke foi conselheiro para o Médio Oriente de Javier Solana, Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia (PESC) de 1997 a 2003, facilitou uma série de desescaladas da violência e de retiradas militares nos Territórios Palestinianos com movimentos islamistas de 2000 a 2003 e esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade em Belém. Foi membro do Comité Mitchell para as causas da Segunda Intifada em 2000. Realizou reuniões clandestinas com a liderança do Hamas em Junho de 2002. É um defensor activo do envolvimento com o Hamas, ao qual se referiu como “Resistentes ou Combatentes da Resistência”. É autor do livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolution. Tem um Master of Arts em Política e Economia pela Universidade de St. Andrews (Escócia).

 

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